quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Haja como uma garota

Lembro de sempre ouvir que deveria me comportar como uma menina, andar como uma menina, me sentar como uma menina e isso nunca fez sentido, pois, eu mesma, sendo a menina em questão, não me achava na obrigação de fazer nada de nenhum jeito específico. 💚
Laíssa Moreira, ilustradora, queimadora de bolos e dominadora de gatos

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Aceita que dói menos



Imagina que louco se todxs decidissem se amar do jeito que são? Seria, no mínimo, revolucionário e transformador. Exatamente o inverso da epidemia de cegueira descrita na ficção pelo romancista José Saramago. Algo como se tivéssemos nascido sem a capacidade de enxergar e, de repente, fôssemos contaminados por um vírus de epifania coletiva, geral e generalizada, com consequências drásticas para o cotidiano. Teríamos que reaprender a viver e a sentir o mundo ao nosso redor, com imagens, cores e angulações diferentes.

Não imagino que seria fácil, muito pelo contrário. A aceitação é um processo doloroso, confuso e longo. Ao fim, porém, ela empodera. E ter o poder sobre o próprio corpo é libertador. Parece óbvio, mas não é. As mulheres sabem bem disso. Somos ensinadas desde muito cedo a odiar nossos corpos. Reflita por uns minutos. Tudo que vemos, lemos, ouvimos, aprendemos até aqui é, essencialmente e resumidamente: por mais que você se goste, deve haver algo que precisa ser mudado, corrigido ou melhorado na sua aparência.

A opressão que sofremos é tão grande e arraigada que somos compelidas a encontrar algum “defeito de fábrica”. Nem preciso dar exemplos aqui. Pense nas mulheres que te cercam diariamente — parentes, amigas, colegas de trabalho, celebridades — e tente lembrar de alguma que esteja plenamente feliz e satisfeita com a própria aparência. Difícil, né? Quase impossível, eu diria. Cor de pele, peso, tipo de cabelo, pelos no corpo, tamanho do peito e da bunda, barriga, rugas e mais um infinito de possibilidades de razões para não se gostar.

Há quem culpe a indústria da beleza, a moda e seus padrões utópicos, ou até mesmo as blogueiras fitness. No entanto, é importante entender que tudo isso só existe porque vivemos numa sociedade em que mulheres são identificadas e reconhecidas como um objeto a serviço dos desejos masculinos. É preciso ser magra, bela, recatada e do lar, se quiser casar e constituir família. Quem não se encaixa nesse modelo, é puta, tudo puta.

Um parênteses: em respeito às prostitutas, essa palavra não deveria ser usada como ofensa. Mas desde quando puta “merece” respeito, não é mesmo?

O que eu vejo hoje é absurdamente incômodo e preocupante. Meninas morrendo em razão de distúrbios alimentares, como bulimia e anorexia. Jovens que antes dos 20 anos já fizeram diversas cirurgias plásticas. Mulheres na casa dos 30, 40 e 50 anos obcecadas em não aparentar a própria idade. Sem falar na concorrência que as próprias mulheres se impõem. Uma patrulha que é bastante desleal e cruel. A maioria de nós faz isso sem nem perceber, quando critica ou julga outra mulher por sua aparência, com comentários, além de machistas, gordofóbicos e até racistas, do tipo:

“Você está mais bonita agora que emagreceu”.

“Com tanta estria e celulite, deveria ter vergonha de usar um biquíni”.

“É muito velha para mostrar o corpo”.

“Cabelo liso é mais arrumado”.


Migas, melhorem. Costumo dizer que já somos oprimidas demais por homens. Não precisamos nos oprimirmos entre nós mesmas. Quando crianças, somos ensinadas que nosso corpo é pecaminoso. Só que isso não é verdade. Assim como também não é natural ou biológico que mulheres sejam mais emocionais e homens mais racionais. Nossos hormônios não tem culpa nenhuma. É tudo construído na infância. Nessa fase, as meninas são incentivadas a falar sobre seus sentimentos, expô-los. Já os meninos são proibidos de chorar, de expressar suas emoções, de falar sobre afeto, carinho e amor. A fragilidade, historicamente associada à mulher, é “argumento” para reprimir homens. É como o machismo opera.

Por isso, eu acredito que toda mulher nasce feminista, a sociedade patriarcal a corrompe. E por isso também que a revolução precisa ser e será feminista. Faz todo sentido
.

Bianca Nascimento, jornalista carioca de alma geminiana

quarta-feira, 22 de junho de 2016

A inteireza de uma mãe



Outro dia a Aline Fonseca escreveu aqui sobre não ser mãe e ser uma mulher inteira. Eu hoje escrevo sobre ser mãe e continuar a ser uma mulher inteira. Porque ser mãe é algo que chega como uma avalanche, no princípio parece que toma conta de tudo e demora um tempo para você catar os caquinhos de si e se reconstruir como um ser completo.

No livro novo do Murakami, "Sono", a protagonista não consegue mais dormir, passa 17 dias insone, mas, em vez de se sentir cansada, sente-se extremamente viva, pois passa a ter várias horas seguidas só para ela, as quais despende lendo sem interrupções, bebericando conhaque e comendo chocolates. E olha que ela nem trabalhava fora de casa. Me lembrei de outra protagonista, a Laura, de "As Horas", que finge ter afazeres fora de casa, para pedir à vizinha que fique com seu filho e ela possa pagar um hotel para ler durante a tarde. E olha que ela também não trabalhava fora de casa.

Me lembrei de mim mesma e de tantas outras mulheres contemporâneas, especialmente com filhos e muito trabalho, tudo junto, e de nossa avidez por horas só nossas. E esta quase urgência de gastá-las silenciosamente adentrando outros universos, por meio de livros, acho que se chama introspecção, uma necessidade de olhar para dentro, se reconhecer no outro e ser um pouco só espectadora do mundo. (Que pena que preciso dormir tanto).

Hoje eu amo ser mãe, mas o papel foi se tornando mais fácil para mim na medida em que não ocupava mais a minha vida inteira, na medida em que havia tempo e espaço para os meus outros eus. Quando os meninos eram pequenos demais, muitas vezes eu me perguntei onde estava a minha vida, quando as crianças exigiam atenção quase 100% do tempo.

À medida que as outras faces de mim puderam de novo fluir mais livremente - a parte que lê, a que escreve, a que gosta de filmes, música, interagir com os amigos, namorar, ter tempo para o cuidado de si, e não só para o cuidado com os outros -, à medida que fui de novo me encontrando comigo mesma, fui gostando mais de ser mãe. Fui sentindo com mais força o prazer da troca, da cumplicidade, o prazer de sentir o maior amor do mundo. Em síntese, eu (quase sempre) curto ser mãe. Mas gosto mesmo é de ser uma pessoa inteira.


Lara Haje, uma mãe e mulher inteira

segunda-feira, 13 de junho de 2016

De vítima a protagonista



Sou a mais velha de quatro irmãos. Tivemos uma infância muito difícil, com poucos recursos ou nenhum. Minha mãe era dona de casa e meu pai sempre trabalhou na construção civil, o que significa que em certos momentos de nossas vidas ele esteve desempregado e, nesse ramo, quanto mais velho se vai ficando, mais difícil é voltar ao mercado de trabalho. Então, ainda muito cedo na vida, aprendi que "para o mundo, as pessoas valem o que têm". E nós não tínhamos muita coisa.

Lembro-me bem de momentos em que um dos meus irmãos, para ir à escola, tinha de esperar o outro chegar para usar a mesma sandália. E essa era só umas das várias situações que vivemos devido à vida precária e cheia de limitações que levávamos.

Aos dez anos, eu já sabia o que era ser dona de casa, cuidava dos meus três irmãos mais novos e já tinha responsabilidades de uma pessoa adulta. Aos doze descobrir da pior forma possível que era uma filha adotada e senti que tudo o que havia vivido até ali tinha sido uma mentira. Do dia para a noite, perdi minha identidade, meu chão. Não sabia mais quem eu era e junto com isso vieram as mágoas, decepções, traumas, medos, incertezas, autoestima baixa, complexo de inferioridade, insegurança, entre outras coisas que faziam com que eu tivesse pena de mim mesma e procurasse sempre um culpado para tudo o que desse errado na minha vida. Magoei pessoas, decepcionei outras tantas e fui ingrata com quem não merecia.

Comecei a namorar muito cedo, fui mãe aos 16 anos, saí de casa contra a vontade dos meus pais que, apesar das decepções que lhes causei, sempre me apoiaram, e fui morar com o pai da minha filha. Essa, aliás, foi uma péssima escolha, porque, literalmente, comi "o pão que o diabo amassou". Claro que também tive a minha parcela de culpa, mas era muito imatura e cheia de certezas "incertas". Sofri muito. Quebrei muito a cara, mas aprendi, a duras penas, aprendi.

Tomei a decisão de me separar quando minha filha tinha 10 anos. Ela sofreu muito, principalmente com o desprezo da parte do pai para com ela e ficaram mágoas, traumas e decepções dela em relação ao pai. Foram tempos difíceis, voltei para a casa dos meus pais e tivemos muitos contra tempos.

Dois anos depois, conheci aquele que seria meu marido e pai dos meus dois filhos, o nosso namoro foi algo mágico, mas também vieram alguns momentos de incertezas e preocupações. Após o nascimento do nosso filho do meio, decidimos nos casar. E meu marido se tornou a referência de pai para a minha primeira filha, tanto que ele a adotou e é presente, dedicado e amoroso, meu melhor amigo e companheiro, mesmo depois de dez anos!

Com tudo isso que contei, aprendi que, independente da situação que esteja vivendo, precisamos ser gratos e perseverantes, procurar ser melhores a cada dia, mudar e fazer valer a nossa história, porque acredito que não estamos aqui por acaso.

Às vezes, penso que gostaria que alguém, em algum momento da minha vida, tivesse me dado uns "tapas" na cara, para que eu pudesse acordar, parar de me fazer de vítima e de procurar culpados para justificar meus erros e falta de atitude. Mas a vida me ensinou. Eu ainda não sou quem gostaria de ser, mas também já não sou quem eu era. É uma grande busca, mas também um grande encontro.



Luciana Oliveira, que demorou a parar de se achar vítima do mundo e ver que a mudança de sua vida só dependia dela

domingo, 12 de junho de 2016

Em busca de si mesma



Um dos movimentos para o resgate de mim mesma foi comprar plantas. Em uma tarde, após deixar as crianças na escola, passei no mercado de flores e voltei para casa com 12 tipos de folhagens. Espalhei todas pela sala, me sentei no sofá e admirei minha pequena floresta. Mexer com terra, sentir o cheiro dela, ver os brotinhos crescendo e as folhas mais velhas secando e morrendo, todo esse ciclo me aproxima da minha essência, como se eu precisasse da natureza, da terra, para me sentir firme, com os pés no chão, forte, para me reencontrar.

Eu me perdi quando tive meu segundo filho, há dois anos e meio. Depois de uma gravidez desejada e tranquila, e um parto tenso, o Rafael nasceu lindo, gordinho, aparentemente saudável. Não me esqueço da felicidade ao senti-lo em meus braços, ao ver minha primeira filha, na época com 5 anos e meio, pegá-lo no colo, ao observar a emoção do meu marido segurando o garoto que ele desejava. Mas essa sensação de plenitude se transformou rapidamente em desespero.

Como inúmeras mães, não conseguia amamentar, apesar de o leite escorrer dos meus seios. Enfermeiras, técnicas de enfermagem, fonoaudióloga, obstetra, pediatra, otorrino, mãe, sogra, amiga, foi tanta gente tentar me ajudar que aquele quarto de hospital parecia uma feira e eu me sentia exposta, à flor da pele, de certa forma violada. Os dias se passaram e não pude ter alta porque o Rafinha continuava com fome, sem conseguir mamar no peito, irritado com o excesso de manipulação na boca dele. A alimentação ocorria somente por meio de sonda ou de copinhos descartáveis de café. Uma semana depois do parto, pedi para a médica me dar alta, mesmo sem conseguir amamentá-lo. Eu precisava de tranquilidade e achava que meu bebê e eu nos entenderíamos no sossego de casa. Mas não foi bem assim...

Apesar da ajuda de uma enfermeira, que nos visitava três vezes por semana, o Rafa nunca conseguiu mamar no meu peito e não ganhava o peso esperado pelos médicos. Naquele momento, eu me sentia frustrada porque, pela segunda vez, amamentar era sinônimo de angústia – a experiência com minha primeira filha também foi dolorosa e difícil. Dessa vez, porém, o problema era muito maior. Meu menino tinha dificuldade de sugar por causa de limitações motoras, descobertas meses depois.

Quinze dias após o nascimento do Rafael, meu marido, minha filha e eu vivemos certamente o momento mais aterrorizante de nossas vidas. Eram mais ou menos 22h, o Rafinha havia acabado de mamar e estava no colo do meu marido para arrotar quando vomitou e engasgou. Perdeu a respiração, ficou roxo, mole, desfaleceu. Eu estava no quarto e levei um susto enorme ao ouvir o grito do meu marido chamando o Rafael e sacudindo, em vão, aquele corpinho frágil. Minha primeira reação foi pegar o interfone para pedir socorro a uma vizinha, médica. Tocou, tocou, tocou, mas ninguém atendeu. Liguei para os bombeiros, para o Samu e nada... Enquanto isso, meu marido continuava gritando, chamando o Rafael, dizendo que ele iria morrer. Minha filha, que tinha acabado de sair do banho, assustada com os gritos, não parava de chorar.

Foi quando meu marido, desnorteado, colocou o Rafa debaixo da torneira. Aquela água gelada fez meu pequeno tomar fôlego, voltar a si. Mas ele continuava mole, assustadoramente pálido e fraco. Liguei para uma amiga, também médica, que morava perto da gente. Ela chegou em cinco minutos e reanimou o Rafa, mas ele novamente engasgou. A aquela altura, eu já havia ligado para o meu pai, que foi correndo para a nossa casa e conseguiu telefonar para o hospital.

Não sei quem dirigiu o carro naquela noite, mas me lembro de chegar ao hospital e encontrar uma enfermeira na porta, à espera da gente. O Rafa foi para a UTI e ficou por lá. Perto da porta da UTI, havia uma escada de emergência. Eu subi e desci aqueles degraus não sei quantas vezes, perdida, desesperada, chorando, sem resposta nenhuma.

Naquela madrugada, o Rafa se recuperou. Passou por um procedimento de aspiração e pôde voltar para casa algumas horas depois. Mas eu, eu nunca me recuperei. Só de pensar naquele dia, entro em pânico. Se para uma mãe que nunca presenciou a quase morte do filho é assustador vê-lo engasgar, para mim qualquer "cof cof" ganha uma dimensão tão grande que sinto taquicardia.

Aquele episódio e diversos outros em que ele esteve na iminência de perder o ar nos fizeram entender que havia algo errado com nosso filho. Ele engasgava demais e não engordava de jeito nenhum. Decidimos procurar ajuda, mas cada profissional tinha uma hipótese diferente para a dificuldade do Rafa. Cogitaram refluxo e trocamos o leite, inclinamos o colchão do berço, demos remédio. Pensaram no frênulo lingual e procuramos uma dentista, que fez um pequeno corte para, quem sabe, facilitar a movimentação da língua. Concluíram que era um problema de deglutição e o Rafa teve de ser submetido a um procedimento tão invasivo que não consegui permanecer na sala de exames até o final.

Essa maratona me desestruturou. Sou jornalista, trabalhava na época em uma redação de jornal, voltava para casa de madrugada. Percebi que não podia continuar naquele ritmo, que tinha de olhar para o meu filho com mais cuidado e atenção. Em uma sexta à noite, após fechar a edição do jornal, abri o jogo com um colega e grande amigo e decidi que deveria parar de trabalhar. Pedi para ser demitida, apesar de precisar muito daquele emprego, do plano de saúde, do vale-alimentação, do décimo terceiro salário. Pouco tempo depois, me demitiram e finalmente pude acompanhar meu filho em todos os exames, nas aulas de estimulação precoce e nas inúmeras consultas à neuropediatra, à fonoaudióloga, à terapeuta ocupacional, à fisioterapeuta, aos profissionais do hospital Sarah Kubitschek.

Até hoje, depois de exames e consultas aqui e em São Paulo, não sabemos o que o Rafa tem. Mas temos consciência de que ele não segue o comportamento padrão das crianças da mesma idade. Demorou a firmar a cabecinha, a engatinhar, a andar. Não fala quase nada. Tem complicações motoras, como hipotonia, desequilíbrio e coordenação motora fina deficiente. Cai toda hora, machuca a boca, tem dois dentes quebrados.

Em meio a tantas dificuldades, tento lidar com preconceitos – os meus e os dos outros. Sempre tive um olhar de compaixão pelas pessoas com algum tipo de deficiência e por suas famílias. Admirava as mães e tentava imaginar o tamanho do sofrimento delas. Sentia raiva ao ver e escrever reportagens sobre a falta de acessibilidade e de outros direitos básicos dessas pessoas. Mas nunca pensei que EU poderia ser mãe de uma criança com deficiência. Aliás, falar sobre isso me assusta muito. Talvez porque ainda não aceitei essa realidade. Talvez porque a realidade não seja exatamente essa, já que não tenho um diagnóstico e meu filho pode ter simplesmente um "atraso", que será superado ao longo do tempo.

Falar sobre isso também me deixa com medo – de não aceitar verdadeiramente as limitações do meu filho, de vê-lo sofrer preconceito na escola e ser apontado na rua como um coitadinho que não anda direito, baba além da conta e fala com dificuldade.

Também tento lidar com outra forma de preconceito. Agora, sou "apenas a dona de casa (como se esse fosse um ofício 'menor')", "a que não trabalha fora", "a que vive às custas do marido e para os filhos", "a que não faz nada e tem todo o tempo do mundo". Já ouvi comentários semelhantes inclusive de gente bastante próxima, como um querido amigo de infância.

Como nossa sociedade é cruel com as mulheres e nos torna cruéis com nós mesmas! Quantas vezes eu – que quase sempre estou com o Rafa a tiracolo, correndo como uma louca entre uma atividade e outra, sem maquiagem, sem esmalte na unha e com a primeira roupa que encontrei no armário – já me peguei pensando que sou inferior por não estar no mercado de trabalho, por não ser como aquela mulher linda, em forma, com unhas perfeitas, cabelos arrumados e dinheiro na bolsa para comprar o que desejar?! Sofro muito com esse tipo de pensamento e todos os dias me policio para não cair nessa armadilha. Até porque aquela mulher linda também não é perfeita, pode ser infeliz por não ter uma família, por se sentir sozinha, por qualquer outro motivo. Assim como a dona de casa pode sofrer porque gostaria de trabalhar fora, mas não pode. Todas temos limitações e precisamos aceitar isso. Eu preciso aceitar isso.


Já tive madrugadas catárticas, de choro até o amanhecer. Já saí dirigindo sem rumo, com as janelas abertas, para sentir o vento no rosto, e uma música alta, para não pensar em nada. Já fui à igreja, em busca de uma espiritualidade há tempos deixada de lado. Já retomei a terapia, que tem me ajudado a lidar com esse turbilhão de sentimentos e a me entender melhor. E estou cuidando das plantas.

Não saber o que meu filho tem é extremamente angustiante: pode ser um leve atraso; uma doença degenerativa grave, que o fará perder os movimentos gradativamente até não sei que ponto; uma doença metabólica grave. Pode ser tanta coisa que, se eu for pensar nisso o tempo todo, certamente enlouqueço. Contudo, nestes dois anos e meio, eu vivo intensamente.

Cresci como pessoa, mãe e mulher, comecei a perceber as delicadezas da vida, da natureza, aprendi a ser mais tolerante, compreensiva e solidária e exercito diariamente a minha paciência. Não está sendo fácil administrar tantas emoções, incertezas, tantos medos. Principalmente para mim, que jurava ter o controle das coisas. Aliás, nesse período, aprendi que não temos o controle de nada. Hoje estou aqui, amanhã posso não estar. Hoje sou saudável, amanhã posso descobrir uma doença avassaladora. Hoje sou feliz, amanhã posso não ser. Por isso, tento viver um dia de cada vez e pensar que tudo vai dar certo. Ao menos, tento...

Pensando bem, eu não só me perdi quando tive meu segundo filho. Eu também me achei.


Letícia Souza, jornalista e mãe da Malu e do Rafa, e também uma mulher que se perdeu e se achou

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Dona da própria história

É possível superar o ciclo da violência, da desigualdade, do preconceito? Essa é a história de Isabel Valadares



Uma mulher invisível?



Diante de tantas notícias tristes de violência contra a mulher – de insultos a estupro coletivo, é impossível não olhar pra si mesma, para os outros, ao redor, para quem mora na sua casa, para seus colegas de trabalho, com os mesmos olhos. Cada comentário, gesto e olhar traduzem preconceitos, histórias, comportamentos e até achismos.

Depois de olhar o entorno, olhei pra dentro, olhei pra Fernanda. O que, nesses 32 anos de vida, ouvi, senti, me envorgonhei ou me orgulhei. E pensei muito sobre o que mostro para os outros, o que deixo que vejam. Tá, eu deixo muito pouco.

Quem me conhece sabe que sou uma pessoa pouco vaidosa. Não vou dizer sem vaidade, porque acredito pouco no exterior, na plástica, na matéria. Acredito mesmo no que está dentro (e lógico, na transformação do universo, NÉAM?). a vaidade – sem teorismos minha gente - tem muito a ver com o que se esconde lá no fundo – de traumas à felicidade.

Mas aí me perguntei: por que sou assim? Tenho mãe, madrasta, tia, avós, irmãs muito vaidosas. E cheguei a uma conclusão simples: não gosto de chamar atenção e nunca gostei. Isso quer dizer que, pra mim, eu usar um colar lindo, grande, é chamar atenção. Eu pintar meu cabelo de rosa, é chamar atenção. Eu usar uma saia mais curta, é chamar atenção. Você deve estar pensando: você jura mesmo? Que bobagem. Pode ser, mas isso foi uma forma que encontrei de me proteger.

Sim, me proteger de abusos. Oi? Sim. Evitar e evitar. De ser olhada no ponto de ônibus e ser chamada de gostosa. De sentar no banco do metrô e olharem para as minhas pernas, de piadinhas de corredor no trabalho, da transparência da roupa ser sinônimo de puta, do meu decote dizer “me coma”, da calça branca mostrar muito a minha bunda.

Isso sempre foi comigo. Sempre achei demais mulheres que não estavam nem aí pra isso. Talvez, por isso, sempre fui rodeada de mulheres que mostram e querem ser vistas. E tive momentos em que soltei meus cabelos, usei batom vermelho, saltão, uma saia bem curta, porque fui encorajada por elas e me senti muito bem assim, obrigada. Mas, sem elas do lado pra me bancar, nunca.

Sempre foi eu, nunca os outros. Tudo isso me fez lidar de um jeito diferente sobre a tal da vaidade, o de estar linda – aqui leia-se linda como o mundo acha que a beleza deve ser.

E a verdade é que acho péssimo me ver assim. Me ver “derrotada” pelos olhos dos outros. Não é mimimi – desse tipo não sou. É porque, sim, abusos acontecem o tempo todo. E me dei conta, lendo todas essas histórias, ouvindo amigas, conhecendo o dia a dia – triste, muito triste - de tantas manas. Desde criança, ouvimos “como ela cresceu e está linda”, “linda desse jeito deve estar cheio de namoradinhos”, fora os “oh lá em casa”, “gostosa” e por aí vai.

Eu só queria me proteger. Só queria evitar lidar com esses bla blás” e, por que não dizer, de abusos, de um estupro. Hoje ainda sou assim, só que mais corajosa. Corajosa porque sei que tem mina pra caralho junto comigo, dizendo NÃO, muitos NÃOs.

O que espero daqui pra frente? Me mostrar. E isso só pode acontecer porque as minas estão abrindo meus caminhos. E ainda é um longo caminho.

Fernanda Fontes é mineira, mas mora em São Paulo desde bebê. A alma fala uai, mas a armadura é paulistana. Formada em jornalismo, corinthiana e feminista desde criancinha.